A audiodescrição de um nascimento para um casal de cegos
“A sala em que nós estamos é toda branca. Com azulejos brancos. Temos aqui o doutor Juliano, que você já conhece. Ele vai ficar sempre à sua esquerda. Na frente dele vai estar o doutor Diego”, descrevia Brisa Teixeira dentro da sala de parto da Maternidade Santa Brígida, em Curitiba. Os médicos, então, iniciaram o procedimento da cesárea, com a incisão. “Já dá para ver o cabelinho dela. Está saindo.” De repente, Teixeira parou de falar. O silêncio se espalhou pela sala, mas por alguns segundos apenas: às 8h09 do dia 19 de setembro, o choro da recém-nascida Daniela tomou conta do lugar. “Com o choro, a gente sabe que tudo deu certo, mesmo sem ver”, afirmou dias depois Rafaela Souza Plachta, mãe da garotinha.
Tanto Plachta quanto o marido, Daniel Marllon Massaneiro, são cegos. A maneira que o casal encontrou para acompanhar o nascimento da primeira filha – que nasceu sem problemas de visão – foi recorrer à audiodescrição, realizada por Brisa Teixeira. “Se não fosse isso, a gente não ia saber quem estava na sala, os detalhes do parto, o que foi feito e o que não foi”, disse a mãe, afagando a cabeça da recém-nascida.
Era a primeira vez que Teixeira descrevia um parto. Formada em jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) e mestra em educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), ela conheceu a audiodescrição por intermédio de uma amiga. Fez diversos cursos na área e agora acumula mais de 400 minutos – ou quase sete horas – de trabalho. “Acredito que minha formação de jornalista agrega muito”, avaliou.
Para fazer uma boa audiodescrição não basta narrar o que está acontecendo diante dos olhos. É preciso realizar antes uma pesquisa sobre o que será descrito e um roteiro das ações prováveis. O trabalho exige ao menos dois profissionais: o audiodescritor, que apresenta o que vê, e uma pessoa com deficiência visual, que atua como consultor, antecipando dúvidas que podem ocorrer na hora da descrição. “O audiodescritor tem que atentar para todos os detalhes”, explicou Teixeira. Mas como não é possível narrar cada elemento, é preciso também fazer escolhas. “Tem que usar palavras objetivas e esclarecedoras”, observou Massaneiro.
No parto de Daniela, o próprio pai atuou como consultor, uma vez que possui formação na área. “A gente fez uma visita técnica, conversou com os profissionais do hospital”, ele contou. A audiodescritora completou: “Fui saber quem eram os médicos, qual o nome dos instrumentos a serem usados. Eu não sou mãe e nunca tinha visto um parto ao vivo.”
Teixeira, 44 anos, e Massaneiro, 34, se conheceram no Centro Universitário Internacional (Uninter), onde ele trabalha como professor da licenciatura em educação especial e ela cursava letras. “Fiquei empolgada quando ele me chamou para fazer a descrição do parto de sua mulher, apesar de a responsabilidade ser bem maior. Eu não sabia que Rafaela também não enxergava”, disse Teixeira. Massaneiro contou que já tinha ido a um casamento com audiodescrição. “Foi sensacional, mas o nascimento da minha própria filha foi muito mais incrível.”
Uma equipe de audiovisual filmou toda a movimentação do dia do parto, desde a chegada da mãe ao hospital até Daniela ser levada para o berçário. Agora, o vídeo ganhará uma audiodescrição própria. “Eu vou roteirizar e a gente vai fazer todas as mudanças que forem necessárias na descrição, até chegar a um bom resultado final”, afirmou Teixeira.
A audiodescrição é uma atividade que se expande no país. A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, de 2015, definiu que os serviços de difusão de imagens deveriam empregar o recurso. Mas foi graças às instruções normativas da Agência Nacional do Cinema (Ancine), de 2016, que se tornou obrigatória nas salas de cinema – todas devem possuir os equipamentos de audiodescrição a partir de janeiro do ano que vem. Medidas como essa têm feito com que o audiovisual seja, no Brasil, uma das principais atividades culturais para as pessoas com deficiência visual.
O consultor em audiodescrição Manoel Negraes explica que, no caso dos equipamentos culturais, como cinemas, museus e teatros, não basta ter o recurso tradutório: é necessária também uma logística relacionada à mobilidade da pessoa com deficiência visual. “Além da audiodescrição, precisa pensar no acesso, na locomoção até o lugar do espetáculo, já que algumas pessoas têm dificuldade maior de mobilidade”, disse ele. “Se você vai a um lugar onde é bem atendido e tem recursos de acessibilidade, você volta. Do contrário, a tendência é não voltar.”
É preciso atentar também à qualidade das audiodescrições. “Não dá para fazer um curso de final de semana e começar a descrever um longa-metragem ou um balé”, afirmou Negraes, que fez pós-graduação sobre essa atividade. Ao contrário da profissão de tradutor de Libras (Língua Brasileira de Sinais), a de audiodescritor ainda não foi regulamentada. Um projeto tramita na Câmara dos Deputados desde 2013, mas só em junho de 2019 foi aprovada uma audiência pública sobre o assunto, sem data definida para realização.
Na sala de parto, logo depois que Daniela nasceu, Teixeira esperou que os pais tocassem a filha pela primeira vez, antes de continuar a descrição. Os médicos colocaram a menina encostada no rosto da mãe. “Já viu se o nariz dela é parecido com o seu?”, perguntou um enfermeiro. Rafaela Plachta, então, passou os dedos com cuidado na face da menina e desabou em lágrimas.
“Ela é cabeludinha. O cabelo dela tá bem molhadinho”, continuou a audiodescritora. Animados, os profissionais de saúde na sala também resolveram contar o que viam. “O nenê tá com uma cor bem bonitinha”, disse um dos médicos, dando tapinhas nas costas de Massaneiro. “Como é essa cor bonitinha?”, questionou o pai, enfatizando o adjetivo. “Bem cor-de-rosinha”, definiu o médico. E Massaneiro abriu um sorriso.